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A Fonte

O que há de errado comigo ? Eu não sei nada e continuo limpo.

Génio

"Carregada a nau no fundo do mar por cobiça e cuidando então que fosse ao fundo por quão rota e aberta ia, começaram por confessar-se sumariamente a alguns clérigos, sem tino e sem ordem, que o confessor chega a tapar a boca ao alienado que vai gritando alto os seus pecados. E a gente do mar, por natureza inumana e mal inclinada, embarcava em jangadas que construíam, roubando e destruindo tudo, e defendendo as embarcações dos quais que as vinham demandar, à força das espadas e de safanões. Foi o espectáculo deste dia o mais triste e lastimoso que se podia ver. E aquela gente toda aos arrecifes agarrada, e que a maré enchendo os afogava, bradavam pelos do batel e das jangadas nomeando muitos por seus nomes, toda a noite num perpétuo grito tamanho que penetrava os céus. "

A Chusma Salva-se Assim
Fausto Bordalo Dias

já anda a gente do mar a fazer fardos e trouxas
arrombando porões a roubar arcas e caixões
e abandonam mulheres os filhos desamparados
que choram muito assustados
sem outra consolação
que uns abraçados com outros
incham das águas aos poucos
dos tragos salgados da morte
imploram a Deus outra sorte
às arfadas
aos arrancos em prantos
e às golfadas
e uns se afogam de vez deixando-se ir ao fundo
e se entregam assim ao sono mais profundo
outros gritam aos céus pela absolvição
e se enforcam depois com suas próprias mãos
perneando com a morte as pernas descarnadas
feitas em rachas em lanhos e tão estilhaçadas
que por toda esta parte em destroços
lhes vão caindo os tutanos dos ossos
e sem saberem nadar
sem a nau
sem tábua nem pau
vai o mundo adornar
cai ao mar
cai ao mar

daquela ossada do barco
constroem seu salvamento
amarrou-se gente ao troço p'la cintura p'lo pescoço
indo assim tão carregada ferem com facas e lanças
as mulheres as crianças que se aferram à jangada
mas rezam avé-marias
padre-nossos litanias
p'las almas dos mutilados
que p'ra ali são abandonados
às arfadas
em arrancos em prantos
e às golfadas
cheio vai o batel e vai quase a afundar
p'ra alijarem a carga botam gente ao mar
engole uma vez de vinho e da marmelada um bocado
o pobre de um marinheiro mesmo antes de ser lançado
deixou-se então atirar com os braços cruzados
e se ofereceu todo à morte tão quieto e calado
e o piloto logo abençoou
os seus dois filhos que ele próprio lançou
e sem saberem nadar
sem a nau
sem a tábua nem pau
vai o mundo a adornar
cai ao mar
cai ao mar

pequena era a tua filha e não a quiseram salvar
ficou ao colo da ama no barco grande a afundar
suplicas da jangada
enfim ergues teus braços de mãe
mas não te escuta ninguém
a chusma salva-se assim
Gaspar Ximenes c
alado
não chores alto cuidado
tu chora só no coração
ou também vais como o teu irmão
às arfadas
aos arrancos em prantos
e às golfadas
passam dias a fio à pura fome e sede
e há quem vá tragando urina e morra do que bebe
outros da água salgada falecem dos sentidos
gritando sempre por água lançam-se ao mar ressequidos
vai-se o soldado e o china não fica dor nem mágoa
botou-se Estêvão mulato com a mesma sede de água
e na tarde daquela aridez
atirou-se o padre e o piloto outra vez
e sem saberem nadar
sem a nau
sem tábua nem pau
vai o mundo a adornar
cai ao mar
cai ao mar
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